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Um monte de gente faz isso

Creio que, para o Brasileiro, se todo mundo era canalha, ele também teria de ser... Por Marcelo Amaral

Por Marcelo Amaral

Levi Andrade Brasileiro foi meu colega de escola. Eu sempre o chamei de Brasileiro, não de Levi. Estudamos na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo. Não era meu amigo. Pelo menos eu nunca o considerei assim. Mas tinha muito contato com ele, porque freqüentávamos o CEPEUSP (chamado de Cepa), o clube da USP. Tínhamos esse direito por sermos alunos da Escola de Aplicação.

Quando terminamos o colegial, o Brasileiro não poderia mais utilizar o Cepa. Eu, filho de funcionário da USP, tive acesso até os 21 anos. Aí ocorreu o episódio que me faz conhecer o caráter do Brasileiro. Ele foi choramingar para o porteiro do Cepa:

- Cara, não vou poder mais vir aqui. Acabei o terceiro colegial. E não passei no vestibular da USP.

O porteiro puxou o Brasileiro de lado e falou:

- Meu, deixa de ser trouxa!!! Faz como todo mundo. Falsifica a carteirinha. É bico!!!

O Brasileiro foi atrás do esquema. Descobriu que um dos caras que jogava basquete com a gente, o Pierre (filho de francês), entrava no Cepa com carteirinha falsa. Uma semana depois, o Brasileiro apareceu no clube e mostrou a “sua carteirinha da USP”. Me espantei quando vi a foto dele e o nome Françoise Dacourt. Perguntei se ele era traveco.

O Brasileiro me explicou:

- Se liga!!! O Pierre clonou a carteirinha da irmã dele, que estuda aqui na USP, para mim. Agora eu posso entrar no Cepa sem problemas. Os trouxas da portaria nem conferem direito.

Questionei se ele tinha vergonha de fazer aquilo. A resposta:

- Ah, meu, eu até tenho. Mas um monte de gente faz isso. Por que eu também não vou fazer?

O Brasileiro gostou da coisa. Mesmo sem ter entrado em nenhuma faculdade - estava fazendo cursinho - arranjou uma carteirinha da UNE. Assim pagava meia entrada em cinemas e jogos de futebol. Pelo que ele me contou, a venda de carteirinhas falsas funcionava na própria sede da entidade. Nunca tive confirmação disso. Mas o fato era que o Brasileiro havia novamente dado um “jeitinho”. Na cabeça dele não havia problema nisso.

- Um monte de gente faz isso, cara.

Creio que, para o Brasileiro, se todo mundo era canalha, ele também teria de ser. Cresceu com esta mentalidade.

Eu me lembro que o Brasileiro demorou para tirar carta de motorista. Foi pelos 21 ou 22 anos. Não gostava de dirigir. Mas o pai dele o obrigou. Esse pai não tinha muita paciência para ensinar e o mandou para auto-escola. O Brasileiro fez o exame prático duas vezes. E não passou. Ficava nervoso na hora e deixava o carro morrer. Ele próprio me contou que foi conversar com o dono da auto-escola.

- Existe um jeito de eu passar no prático?

O dono da auto-escola entendeu a mensagem. E o levou para a sala dele. Para um papo mais reservado. Mostrou um plano de pagamento que incluía a propina para garantir a aprovação no exame. O Brasileiro aceitou na hora. Principalmente porque o dono da auto-escola disse que “um monte de gente faz isso”. Brasileiro pediu dinheiro ao pai – falando que era para comprar livros da faculdade, que depois de muito tempo ele conseguiu entrar – e garantiu a sua carteira de habilitação.

Fiquei sabendo de um acontecimento. Foi logo quando o Brasileiro começou a sair sozinho de carro. Ele pegou alguns colegas e foi para uma dessas festas – não sei se da uva, do morango ou do abacate – que acontecem no interior de São Paulo. Ele ficou empolgado com o Audi que o pai o havia emprestado, e socou o pé no acelerador. Foi parado por um policial rodoviário.

O Brasileiro não perdeu tempo. Fez uma vaquinha com quem estava no carro e, sem muita conversa, deu 75 reais ao guarda. O policial achou pouco. Resmungou. Mas disse que dessa vez “quebraria o galho” e mandou o Brasileiro seguir viagem. Para ele, leviano era somente o guarda, que aceitou o suborno. Para o Brasileiro, o corruptor estava na dele, que era oferecer. Comentou com os colegas:

- Um monte de gente faz isso.

Encontrei o Brasileiro há dois anos. Foi casualmente, num estacionamento de um shopping center. Estava fazendo algo esquisito para mim. Agachado e colocando uma placa diferente, verde, em cima da placa original do carro dele. Depois dos cumprimentos de praxe, eu perguntei ao Brasileiro o porquê dele ter colocado aquela placa no carro. A explicação:

- É que hoje é dia do rodízio do meu carro aqui em São Paulo. Para poder andar sem levar multa, eu arrumei essa placa verde. Foi um amigo meu que trabalha na polícia que me deu. Não sei direito por qual motivo, mas os guardas não multam quem anda com essa placa.

Ele ainda me mostrou uma carteira com um brasão militar. Fornecida por outro amigo dele. Servia para intimidar os policiais que se atrevessem a mexer com o Brasileiro.

Falamos sobre os nossos trabalhos atuais. O Brasileiro estava como representante de vendas de uma indústria de óculos. Abriu o porta-malas do carro e apontou para dois mostruários. Me revelou:

- Esse primeiro é o “oficial”. O da empresa que eu represento. O segundo é...sabe como é...

O Brasileiro não sabia que eu, na época, trabalhava em uma empresa do ramo óptico. O mostruário “sabe como é...” era composto de mercadoria contrabandeada. Óculos de grifes internacionais famosas, que entravam no Brasil, segundo o Brasileiro, pela fronteira com o Paraguai.

- É legítimo. Só é muamba. Pelo menos é o que dizem. Sabe como é, né!? Para ganhar dinheiro a gente tem de fazer coisas assim. Tem de ser esperto. Um monte de gente faz isso, como eu.

A muamba do Brasileiro não era dos produtos com os quais eu trabalhava. Por isso resolvi ficar calado. E ouvi com atenção as explicações do Brasileiro. Quando ele me perguntou no que eu atuava, falei: “Em Marketing”. Sem contar em qual setor de atividade. E o Brasileiro nem me questionou isso.

Na hora da despedida, eu notei que havia um adesivo de um político no carro do Brasileiro. Um conhecido como “Rouba, Mas Faz”. Perfeitamente coerente com a mentalidade do meu ex-colega.

Os 40 Anos do Golpe de 64 me fez lembrar do Levi Andrade Brasileiro. Lamentei ter perdido o cartão dele. Eu queria mandar para ele uma frase, dita em 1968, no AI-5, por um figura importante do regime militar. Um que até hoje está por aí. Aquelas palavras traduzem o comportamento do Brasileiro. É assim: “Às favas os escrúpulos de consciência”.

Marcelo Amaral é jornalista. 

E-mail: marcelo@marceloamaral.com.br

Site: www.marceloamaral.com.br



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